quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Sorvete

Sorvete

O portão da garagem demora para abrir. Toda vez é assim: a gente aperta o botão várias vezes, cada vez mais forte, e ele abre quando quer. Qualquer dia alguém fica preso, para dentro ou para fora. A gente ia para algum lugar, já nem lembro onde, ou achava que ia, que tinha que ir, na verdade não importa. Estava chovendo fininho, devagar, valia e não valia a pena usar o limpador de pára-brisa. Acho que estava ligado, devia estar. Vem volta espera um tempo vem de novo e volta e espera. Temporizador. Acho que é esse o nome da função. Temporizador do limpador de pára-brisa. Pena que não dá pra regular o tempo. É sempre a mesma ida, a mesma volta, a mesma espera. A chuva era daquelas frias e finas que parecem eternas. Era fim de tarde, dia de semana, semana comum. A maioria dos faróis já estava acesa, mas não todos. São bonitos os faróis vermelhinhos acesos no fim do dia, quando ainda tem cor no resto das coisas, por pouco tempo. De noite fica mais sem graça. Ainda não era noite. Logo no primeiro sinal, a gente ligou o som, o CD já estava lá, Chet Baker, acho. Era sim, era Chet Baker, não era?

Ele: “Posso trocar de música?”

Ela: “Pode.”

Desde que arrombaram o carro, os CDs eram poucos, sempre os mesmos três ou quatro, mas esse não. Esse não era um deles, o que foi para o som, o Araçá Azul, direto naquela música De Conversa, sabe?

Ela: “De novo?”

Ele: “É, de novo...”

Ela: “E se a gente conversasse?”

Ele: “Sobre o que?”

Ela: “Sobre a gente.”

Ele: “Prefiro ouvir música.”

Ela: “Sempre as mesmas.”

Ele: “É.”

Ela: “Foi eu quem te mostrou esse disco, lembra? A gente nem namorava, foi na casa dela, eu morrendo de ciúmes, querendo impressionar, você desatento, olhando pra ela, pros peitos dela. Você nem disfarçava, ou nem percebia, nem olhava pra mim. Mas aí você se interessou pela música, perguntou umas coisas, eu me enchi de graça, você olhou pros meus peitos, só um pouquinho, eu fiz que fiquei sem graça, fui falando do disco, fazendo charme, beliscando amendoim, molhando a boca de cerveja e depois com a língua, quase te pedindo pra me olhar mais um pouquinho. Você nem notou. Os peitos dela passavam pra lá e pra cá, você nem disfarçava. Com aqueles peitos é tudo mais fácil. Até hoje é assim. Naquele dia você foi embora e esqueceu de me dar tchau. Eu fui até a janela e vi você saindo pra direita, acendendo o cigarro e atravessando a rua. Você virou pra cima e me viu debruçada, mas nem percebeu.

Ele: “Eu nem lembrava mais disso. Você vive desenterrando os mortos. Qualquer dia eles te levam junto.”

Ela: “Tomara.”

Ele: “Você deu comida pro gato?”

Ela: “Pro gato e pro peixe. E se a gente fosse pra um motel?”

Ele: “Pra que?”

Ela: “Pra ver se rola.”

Ele: “Melhor não.”

Ela: “Você lembra da primeira vez? A gente fechou a cortina, pôs o gato pra fora, cobriu o peixe com a toalha, ligou o som alto, tirou o telefone do gancho, apagou a luz, fumou um e dois e não fez nada disso. Nada. Só depois.”

Blá blá blá blá blá, a música nem acabou ainda, ou essa já é outra?

Ela (carinhosamente): “Tô com saudade...”

Ele: “De que?”

Ela: “Canalha!”

Silêncio.

Ele: “Desliga esse som.”

Ela: “Foi você que ligou.”

O som, quando desliga, é um alívio. Mas o silêncio é pior. Deve ter durado uns três minutos, nem isso. Depois voltou o Chet Baker, mais baixo dessa vez, ou a cidade mais alta, não sei.

Ela: “Pára que eu quero descer.”

Ele: “Melhor não.”

Ela: “Então mais pra frente, na frente do posto.”

Ele: “Lá é pior, é mais perigoso.”

Ela: “Perigo de que?”

Ele: “De vida.”

Ela: “Tomara.”

Ele: “Você lembrou de comprar café?”

Ela: “Depois a coisa virou e você queria porque queria. Me deu presente, pagou jantar, pôs suas músicas, mostrou seus desenhos, me levou na sua árvore, me contou da sua mãe, me pediu para guardar segredo. Você disse que só disse pra mim. Pra mim e pra árvore. Disse que só disse uma vez. Disse, não disse?

Ele: “Minha árvore... Faz anos que eu não vou na minha árvore. Mais de dois. Não sei nem se está viva. O coador também está pra acabar. Só agora me lembrei. Você lembrou de comprar?

Alívio. O CD parou e a gente ouviu de novo o som da cidade entrando abafado pelos vidros melados, meio embaçados, só não pode limpar com a mão. Ficar parado no sinal da avenida Atlântica no fim de um dia de chuva fria e olhar para o lado é uma das vantagens de morar no Rio e não em Madrid ou Manaus. A gente até esquece umas coisas, por um tempinho. A praia no frio é quase mais bonita. O cachorro também acha, acho. Mesmo molhado na praia molhada e fria, quase de noite, já meio de noite, de noite, mas lá tem luz, não tem?

Ela: “Me dá um cigarro?”

Ele: “Tá no porta-luvas.”

Som do porta-luvas sendo aberto e logo depois fechado. Som de maço de cigarro.

Ela: “Me dá um isqueiro?”

Ele: “Tá no bolso.”

Ela: “Esquerdo ou direito?”

Ele: “ Direito.”

Som dela mexendo na calça dele. Som de isqueiro acendendo, som de alguém tragando. Som de vidro abrindo, da fumaça saindo e da cidade entrando.

Ela: “E se a gente jantasse?”

Ele: “Onde?”

Ela: “Em qualquer lugar.”

Ele: “Qualquer lugar onde?”

Ela: “Ali, por exemplo, ou naquele que cê gosta.”

Ele: “Melhor não.”

Ela: “Você se lembra de quando eu fiz um pato para você?”

Ele: “Com laranja.”

Ela: “E aspargo. Você nem tocou no aspargo. Na hora eu nem comentei. A laranja estava azeda, você preferia, dizia que preferia. Eu joguei umas doze fora até achar a azeda. Você preferia. Acho que foram mais de 12, umas quinze, quinze ou vinte doces. Você dizia que laranja doce era pior que chuchu. Eu gostava de chuchu, naquele tempo. Você ainda tinha fome, sede, saúde. Você até repetia, fazia elogios. Foi nosso primeiro jantar na casa nova, depois da mudança, antes do acidente. Você falava enquanto comia, falava muito, falava de cinema para me impressionar, fazia tipo, fazia onda, fazia força, fazia de conta, fazia de lado, por trás, por cima.”

Ele: “E dormia depois.”

Ela: “Sempre. E eu também. A gente sabia dormir, naquele tempo.”

Silêncio. O silêncio depois da fala é mais forte que a fala, dizem. A gente podia ficar horas ali naquele carro vagando pela cidade, um cigarro atrás do outro, uma rua atrás da outra, a praia, outra praia, outra praia. Os faróis de trás, vermelhinhos, são melhores que os da frente, muito brancos, muito claros, muito fortes. Bom para pensar na vida. Já tem muita janela acesa, ninguém gosta de ficar no escuro. Talvez aquele quarto andar. Ficar no escuro é pensar no dia que acabou. Ou na morte de alguém. Melhor dormir de uma vez. Mas aqui no carro tem a luz de fora, no carro a gente nunca sente o escuro que sente na sala. Sala escura, casa vazia, notícia ruim. Melhor pensar outra coisa, olhar o horizonte. Deve ter alguém no mar.

Ela: “E se a gente nadasse?”

Ele: “ Crawl?”

Ela: “ É. ”

Ele: “ Onde?”

Ela: “ No mar.”

Ele: “De noite?”

Ela: “É.”

Ele: “No frio?”

Ela: “É.”

Ele: “De roupa?”

Ela: “Não”

Ele: “Sem roupa?”

Ela: “É.”

Ele: “Sem chance.”

Ela: “Você se lembra da gente nas pedras? A gente foi nadando, o mar quase te arrastou. Você subiu primeiro, depois eu. A gente esperou o pescador ir embora, ou não esperou, já nem lembro, e depois ele foi mesmo porque a gente nem ligou e foi em frente, em frente. Aquele céu de dia seco, azul seco, a pele salgada e seca, você deu aqueles gritinhos ui ui ui, iguais aos dos primeiros dias, lembra? E de noite de novo, tudo igual. Eu fiquei toda ralada, várias vezes. A gente fazia em qualquer canto, naquela época. Ralava na pedra, enchia de areia, debaixo da espuma, só a cabeça pra fora, no meio das ondas, engolia água, passava vergonha, falava baixinho, gemia baixinho, na ponta do pé, quase morria.”

Silêncio, cigarro, buzina.

Ela: “E se a gente se matasse?”

Ele: “Pra que?”

Ela: “Pra resolver a vida.”

Ele: “Já tá tarde, melhor amanhã.”

Ela: “Amanhã eu posso não querer.”

Ele: “A gente espera mais um pouco.”

Ela: “Uns dois dias?”

Ele: “Por aí, dois ou três.”

Ela: “Canalha!”

Silêncio.

Ela: “Uma vez você me disse que morria se eu fosse com ele. Foi naquele dia da praia, lembra? Depois nunca mais. Depois da praia. Eu até fui com ele, sem vontade, fui de novo, fiz tudo que eu pude. Mas isso foi depois. Antes você ligava. Você até me disse um poema, uma frase bonita, uma rima. Lembro bem. Me levou para passear na beira da praia, um dia frio e feio, só a gente passeando na praia, aquela rima. Depois a gente sentou e ficou quieto. Devem ter passado duas horas, lembra, de silêncio e marulho. Você sempre foi bom de silêncio. A gente, a espuma chegando perto, o sorveteiro. Ele devia estar triste, aquele sorveteiro. Não tinha mais ninguém na praia naquele dia. Quem ia tomar sorvete naquele frio, naquela praia? Tinha os olhos tristes, lembra? Eu disse isso tudo pra você e você o chamou e pediu um sorvete. De coco, não foi? E voltou pro silêncio. Eu ainda consegui pensar no sorveteiro, na tristeza dele, no frio de cada picolé daquela geladeira. Até ouvir a rima. De onde você tirou aquela rima, naquela hora? O poema era fraquinho blá blá blá, nem lembro, mas a rima não. Eu cheguei a chorar, acho. Você não deve ter visto. Ou viu. Talvez por isso tenha me dado aquela lambida. Ainda sinto aquele gosto quando o tempo esfria, quando eu esfrio. Nunca vou me esquecer daquela lambida que você me deu do seu sorvete.”

Silêncio.

Ela: “Cê topa um sorvete?”

Fim

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