segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Fungos

O projeto Fungos consiste em uma velha árvore de grande porte repleta de autofalantes, todos entoando repetidamente a frase:

SAIA DA MINHA CABEÇA

Dita por diferentes vozes entre adultos, crianças, velhos, homens, mulheres.

***

Material necessário:

96 Autofalantes de tamanhos variados; 6 amplificadores para headphone com 8 saídas stereo; 16 cd players.

Circuito Interno de TV

Na parte interna de uma televisão comum, dessas utilizadas em sistemas de vigilância, instalar quatro micro-câmeras (especialmente preparadas com lentes "macro") enquadrando seus componentes eletrônicos e seu tubo de imagem. Em seguida, ligar essas câmeras a um sistema de circuito interno ligado à própria TV, de forma que, na tela, possamos vigiar o que se passa em suas entranhas.

Buraco Negro

Projeto de instalação para o 14º Salão da Bahia – MAM da Bahia – Solar do Unhão.


A idéia básica deste projeto é captar diversos sons espalhados pelo espaço do Solar – mar, árvores ao vento, o interior da capela, tábuas do assoalho, carros passando pelo paralelepípedo, dutos de ar condicionado, salas de exposição, espaços de escritório, restaurante, pátio etc – e transmiti-los ao vivo para um pequeno espaço escuro onde só cabe uma pessoa. Uma espécie de super condensação do espaço cognitivo, um buraco negro sonoro.

Os microfones ficariam espalhados por toda parte, com os fios indo em direção ao “ponto de escuta”, um cilindro negro acusticamente isolado com as paredes repletas de autofalantes.

Tecnicamente, trata-se de algo bastante simples, necessitando de aproximadamente 48 microfones comuns (de modelos variados), 3 amplificadores para headphones tipo Behringer HA800 ou similar, 40 autofalantes comuns de 3” e muitos metros de fio. A sala/cabine pode ser construída em MDF, desde que seja feito um tratamento para isolamento acústico. A forma e as dimensões podem variar conforme o espaço disponível.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007





Imagine o som que faz no meio de um buraco negro.






Imagine seus pêlos feitos de osso.





Cara-a-cara:

Imagine um espelho no caixão.







Imagine se a morte não fosse.





Imagine a cor azul.

(Pausa.)

Agora deixe escorrer pela garganta

gargareje

e cuspa na pia.












Imagine a Muralha da China coberta de espelhos.



!Fogo!




O projeto !Fogo! consiste em prender armas carregadas e engatilhadas em árvores de uma floresta, com uma fita passando pelo gatilho e dando a volta no tronco. Conforme a árvore vai crescendo, o tronco vai engrossando e tensionando a fita, até que, sem mais nem menos, a arma dispara.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

A cara da moça

A cara da moça

A cara dela. Eu nunca vou esquecer a cara dela. A cara da moça. A cara dela acordando era a melhor coisa do dia, e a primeira, naquele tempo. Bons tempos. Ninguém nunca viu o que eu vi naquela cara dela acordando, naquela cara dela amassada. As manchas e cílios, a penugem, as dobras pra lá e pra cá, os olhos grudados depois abertos querendo fechar, um lábio maior, o de cima, e um menor, o de baixo, e a orelha meio grande disfarçada nos cabelos meio pretos, meio não. Os nossos dias e noites e coisas acumuladas e vivas naquela cara dela amassada. A gente dormia abraçado, eu atrás ela na frente. Eu não via a cara dela, só o cheiro dos cabelos e o quentinho e macio dos seios, o pé entre os meus, as coxas nas coxas. Mas de manhã a cara dela era minha, aquela cara dela amassada que eu acordava e lambia e amassava pelas noites e noites, de sono e de sexo e de alívio de mais um dia de cão. A cara era minha, a cara da manhã.

Amassada.

Depois ela tomava banho e passava perfume e pintava o olho e o lábio e a cara e a cara virava dela e só dela, não era mais minha, e depois ela saía e passava o dia e depois ela voltava e dormia e acordava. Acordava com a cara amassada e minha.

Mas um dia não.

Um dia ela não voltou e não dormiu, e dormiu com outro, acho eu, e foi acordada por outro, acho eu, que não era eu, isso eu sei, e que nunca entendeu, isso sim eu sei, que nunca entendeu a cara dela de manhã, aquela cara dela amassada antes do banho que ela e só ela tinha de manhã e que era minha e depois não.

Fulana

Fulana

“Silêncio, porra!”

Um: – Não enche o saco! Esse cara é um saco, a gente não pode nem conversar. Saco.

Outro: – Saco.

Um: – Você viu Fulana?

Outro: – Quem?

Um: – Fulana de tal.

Outro: – Ah, Fulana. Não, não vi não.

Um: – Não viu. E Cicrano?

Outro: – Quem? Cicrano de tal?

Um: – Ah, Cicrano. Não, não vi não.

Outro: – Não viu. Mas onde é que você estava?

Um: – Estava aqui, com você.

Outro: – Sim. Mas e antes?

Um: – Antes do quê.

Outro: – Antes de estar aqui.

Um: – Ah, antes. Não sei, não lembro.

Outro: – Eu vi você entrar ainda há pouco, aqui da minha janela.

Um: – Viu?

Outro: – Vi.

Um: – Ah, sim.

Um: – Pensei que você estava com Fulana.

Outro: – Quem?

Um: – Fulana, fulana de tal.

Outro: – Ah, Fulana. Não.

“Silêncio aí em baixo, porra!!”

Um: – Silêncio o caralho!!

“O quê?!?!”

Um: – Silêncio o caralho, porra!!

“O caralho o caralho. Eu é que digo porra!”

Um: – Esse cara é um saco.

Outro: – Um fresco.

Um: – Onde a gente estava mesmo?

Outro: – Quando?

Um: – Na conversa.

Outro: – Que conversa?

Um: – A de agora.

Outro: – Ah, a de agora. Não lembro.

Um: – Tá, então tchau. Eu te chamo de novo quando lembrar.

Outro: – Lembrar do que?

Um: – Da conversa.

Outro: – De agora?

Um: – Sim, de agora. Ah, lembrei. A gente ia falar de Fulana.

Outro: – De tal?

Um: – É.

Outro: – Então?

Um: – Então o quê?

Outro: – O que tem Fulana?

Um: – Não sei, não a vi. Pensei que você tinha visto. Mas pelo visto não viu. Não foi?

Outro: – Foi o quê?

Um: – Você não viu Fulana, ou viu?

Outro: – Quando?

Um: – Hoje, antes de vir pra cá.

Outro: – Não.

Um: – E antes.

Outro: – Não.

Um: – Você já viu Fulana?

Outro: – Quando?

Um: – Na vida.

Outro: – Já.

Um: – Quando?

Outro: – Na vida.

Um: – Na vida quando?

Outro: – Não sei.

Um: – Mas já viu.

Outro: – Já.

“Psssiiiiuuuu!!! Porra!!”

Um: – Lá vem o saco.

Outro: – O fresco.

Um: – Não enche o saco!!

Um: – Mas voltando...

Outro: – De onde?

Um: – Pra conversa

Outro: – Ah.

Um: – Você conhece a Fulana, mas não lembra de quando.

Outro: – É.

Um: – E você gosta dela?

Outro: – Gosto.

Um: – Gosta como?

Como como?

Um: – Como você gosta dela?

Outro: – Gosto dela gostando.

Um: – Pra fuder?

Outro: – O quê?

Um: – A Fulana.

Outro: – Fuder a Fulana ou fuder com a Fulana?

Um: – Qual a diferença?

Outro: – A ou com.

Um: – E faz diferença?

Outro: – Nenhuma.

Um: – E então?

Outro: – Então o quê?

Um: – Você gosta dela pra fuder ou para falar?

Outro: – Não sei.

Um: – Como não?

Outro: – Nunca fodi nem falei.

Um: – Como não?

Outro: – Não.

Um: – Mas queria.

Outro: – O que?

Um: – Falar ou foder.

Outro: – Qual dos dois?

Um: – Pergunto eu.

Outro: – Foder, acho.

Um: – Ah, sei.

Outro: – Sabe o que?

Um: – Nada.

“Calem a boca!!!!”

Um: – Cala você, seu filho da puta!! Vai se foder!!

Um: – O cara é um puta dum saco.

Outro: – E fresco.

Um: – A Fulana deve ser uma puta foda.

Outro: – Puta o que?

Um: – Foda.

Outro: – Puta por que?

Um: – Puta não, puta foda.

Outro: – Puta, então.

Um: – Não, porra, puta foda, não puta.

Outro: – Ah bom.

Um: – É.

Outro: – Então?

Um: – Foi o que eu disse.

Outro: – O quê?

Um: – Que ela fode bem, acho.

Outro: – Acha por que?

Um: – Porque parece.

Outro: – O quê?

Um: – Que ela fode bem.

Outro: – Com quem?

Um: – Com qualquer um.

Outro: – Tipo puta?

Um: – Não, tipo que dá uma puta foda, porra!

Outro: – E puta, não dá?

Um: – Depende.

Outro: – De que?

Um: – Da puta.

Outro: – Ah. Claro, depende da puta.

“Silêncio seus filhos da Puta!!! Silêncio!!!”

Um: – O cara é um saco e ainda ouve a conversa.

Outro: – Se não ouvisse não reclamava.

Um: – Não enche o saco, seu porra!!!

Outro: – Um fresco.

Um: – Deixa ele pra lá.

Outro: – Pra onde?

Um: – Lá pra cima, na casa dele.

Outro: – Mas lá ele escuta e reclama.

Um: – Verdade, melhor ele sair.

Outro: – Pra onde?

Um: – Sei lá.

Outro: – Pra rua?

Um: – É, pra rua.

Outro: – E se a gente saísse e não ele?

Um: – Pra onde?

Outro: – Pra rua.

Um: – Pra que?

Outro: – Pra ele não encher o saco.

Um: – O nosso?

Outro: – É, o nosso.

Um: – É, pode ser.

Um: – Então vamos.

Outro: – Pra rua?

Um: – É.

Outro: – Mas o que a gente vai fazer na rua?

Um: – Conversar.

Outro: – Sobre o que?

Um: – Sobre isso.

Outro: – Isso o quê?

Um: – O que era mesmo?

Outro: – O quê?

Um: – Isso.

Outro: – Isso o quê?

Um: – A conversa.

Outro: – Não lembro.

Um: – Fulana!

Outro: – Fulana quem?

Um: – De tal.

Outro: – Ah, sim.

Um: – Eu queria foder a Fulana.

Outro: – Na rua?

Um: – Não, em casa.

Outro: – Qual casa?

Um: – Na minha.

Outro: – Aí, na sua?

Um: – É, aqui, na minha.

Outro: – Será?

Um: – Será o que?

Outro: – Que dá pé?

Um: – Não sei, talvez.

Outro: – Sei não.

Um: – Por quê?

Outro: – Em casa é foda.

Um: – É foda?

Outro: – É.

Um: – E na rua, era uma boa?

Outro: – Boa o que?

Um: – Foda.

Outro: – Com quem?

Um: – Fulana.

Outro: – Na rua?

Um: – É.

Outro: – Com Fulana?

Um: – É.

Outro: – De tal?

Um: – É.

Outro: – Sei não.

Um: – Por quê?

Outro: – Fulana é foda.

Movimento de câmera


O projeto Movimento de Câmera consiste em plantar uma Palmeira Imperial (já com dois ou três anos de vida), instalar uma câmera de vigilância próxima a seu topo, ligar a câmera permanentemente a um ou mais monitores e, a partir disso, originar um contínuo e lentíssimo movimento de câmera: um “tilt up” de 40 a 50 metros com mais de 100 anos de duração. Trata-se, pois, de um projeto de longo prazo, em que a natureza realizará um movimento cinematográfico de suavidade impensável para qualquer maquinaria de cinema ou vídeo já inventada. Um movimento de câmera absolutamente imperceptível ao olho, embora concreto e irrefutável, estruturado sobre um tempo insuportavelmente dilatado.

A idéia é realizar a instalação em três cidades brasileiras (a definir), e ter a imagem não apenas em monitores ao pé de cada palmeira, mas também em um site na Internet, onde a lenta subida das imagens - bem como as transformações das cidades - possam ser acompanhadas por qualquer pessoa, de qualquer lugar, ao longo dos anos.

Numa situação ideal, o projeto poderia ser repetido em diversas cidades do mundo, com todas as cenas transmitidas simultaneamente para a mesma página da Internet, estabelecendo um encontro de imagens e sons ao vivo, em pleno e duradouro movimento.




Imagine um buraco no oceano.

Um buraco fundo, num mar fundo. O buraco é feito de aço, um tubo de aço espesso. As soldas muito bem feitas e estanques, a calandragem perfeita e monumental, o cilindro enorme e oxidado. Sete metros de diâmetro, não mais.

Imagine ele bem cravado no fundo do solo marítimo, um quinto cravado, quatro quintos para fora, o topo um pouco acima da linha d’água. Uma bomba tira a água de dentro do tubo.

Imagine como demora.

Imagine o tubo seco por dentro, o sol forte, o buraco fundo no meio do oceano.

(agora imagine de noite)



Imagine a solidão lá dentro, lá embaixo, sozinho, você e uma cadeira, você e um banquinho.

Imagine o som do seu grito mais alto. O som dos seus peidos.

Imagine a cor do céu claro lá no alto, lá longe.

Imagine a primeira chuva.






Para Sergio Mekler




Imagine se o sol emitisse, com a mesma potência, além de luz e calor, som:

um ronco,

um urro,

um gemido,

um zumbido,

um Fá menor.


(Pausa)


Imagine o amanhecer; imagine o entardecer.






Trepadeiras

O projeto consiste em “salpicar” de móveis de madeira três velhas árvores de grande porte: uma com cadeiras, uma com mesas, uma com cristaleiras. As três árvores não devem estar nem muito próximas nem muito distantes, formando um conjunto que se descobre em partes, ao longo de um percurso, e não numa única visada.

Sorvete

Sorvete

O portão da garagem demora para abrir. Toda vez é assim: a gente aperta o botão várias vezes, cada vez mais forte, e ele abre quando quer. Qualquer dia alguém fica preso, para dentro ou para fora. A gente ia para algum lugar, já nem lembro onde, ou achava que ia, que tinha que ir, na verdade não importa. Estava chovendo fininho, devagar, valia e não valia a pena usar o limpador de pára-brisa. Acho que estava ligado, devia estar. Vem volta espera um tempo vem de novo e volta e espera. Temporizador. Acho que é esse o nome da função. Temporizador do limpador de pára-brisa. Pena que não dá pra regular o tempo. É sempre a mesma ida, a mesma volta, a mesma espera. A chuva era daquelas frias e finas que parecem eternas. Era fim de tarde, dia de semana, semana comum. A maioria dos faróis já estava acesa, mas não todos. São bonitos os faróis vermelhinhos acesos no fim do dia, quando ainda tem cor no resto das coisas, por pouco tempo. De noite fica mais sem graça. Ainda não era noite. Logo no primeiro sinal, a gente ligou o som, o CD já estava lá, Chet Baker, acho. Era sim, era Chet Baker, não era?

Ele: “Posso trocar de música?”

Ela: “Pode.”

Desde que arrombaram o carro, os CDs eram poucos, sempre os mesmos três ou quatro, mas esse não. Esse não era um deles, o que foi para o som, o Araçá Azul, direto naquela música De Conversa, sabe?

Ela: “De novo?”

Ele: “É, de novo...”

Ela: “E se a gente conversasse?”

Ele: “Sobre o que?”

Ela: “Sobre a gente.”

Ele: “Prefiro ouvir música.”

Ela: “Sempre as mesmas.”

Ele: “É.”

Ela: “Foi eu quem te mostrou esse disco, lembra? A gente nem namorava, foi na casa dela, eu morrendo de ciúmes, querendo impressionar, você desatento, olhando pra ela, pros peitos dela. Você nem disfarçava, ou nem percebia, nem olhava pra mim. Mas aí você se interessou pela música, perguntou umas coisas, eu me enchi de graça, você olhou pros meus peitos, só um pouquinho, eu fiz que fiquei sem graça, fui falando do disco, fazendo charme, beliscando amendoim, molhando a boca de cerveja e depois com a língua, quase te pedindo pra me olhar mais um pouquinho. Você nem notou. Os peitos dela passavam pra lá e pra cá, você nem disfarçava. Com aqueles peitos é tudo mais fácil. Até hoje é assim. Naquele dia você foi embora e esqueceu de me dar tchau. Eu fui até a janela e vi você saindo pra direita, acendendo o cigarro e atravessando a rua. Você virou pra cima e me viu debruçada, mas nem percebeu.

Ele: “Eu nem lembrava mais disso. Você vive desenterrando os mortos. Qualquer dia eles te levam junto.”

Ela: “Tomara.”

Ele: “Você deu comida pro gato?”

Ela: “Pro gato e pro peixe. E se a gente fosse pra um motel?”

Ele: “Pra que?”

Ela: “Pra ver se rola.”

Ele: “Melhor não.”

Ela: “Você lembra da primeira vez? A gente fechou a cortina, pôs o gato pra fora, cobriu o peixe com a toalha, ligou o som alto, tirou o telefone do gancho, apagou a luz, fumou um e dois e não fez nada disso. Nada. Só depois.”

Blá blá blá blá blá, a música nem acabou ainda, ou essa já é outra?

Ela (carinhosamente): “Tô com saudade...”

Ele: “De que?”

Ela: “Canalha!”

Silêncio.

Ele: “Desliga esse som.”

Ela: “Foi você que ligou.”

O som, quando desliga, é um alívio. Mas o silêncio é pior. Deve ter durado uns três minutos, nem isso. Depois voltou o Chet Baker, mais baixo dessa vez, ou a cidade mais alta, não sei.

Ela: “Pára que eu quero descer.”

Ele: “Melhor não.”

Ela: “Então mais pra frente, na frente do posto.”

Ele: “Lá é pior, é mais perigoso.”

Ela: “Perigo de que?”

Ele: “De vida.”

Ela: “Tomara.”

Ele: “Você lembrou de comprar café?”

Ela: “Depois a coisa virou e você queria porque queria. Me deu presente, pagou jantar, pôs suas músicas, mostrou seus desenhos, me levou na sua árvore, me contou da sua mãe, me pediu para guardar segredo. Você disse que só disse pra mim. Pra mim e pra árvore. Disse que só disse uma vez. Disse, não disse?

Ele: “Minha árvore... Faz anos que eu não vou na minha árvore. Mais de dois. Não sei nem se está viva. O coador também está pra acabar. Só agora me lembrei. Você lembrou de comprar?

Alívio. O CD parou e a gente ouviu de novo o som da cidade entrando abafado pelos vidros melados, meio embaçados, só não pode limpar com a mão. Ficar parado no sinal da avenida Atlântica no fim de um dia de chuva fria e olhar para o lado é uma das vantagens de morar no Rio e não em Madrid ou Manaus. A gente até esquece umas coisas, por um tempinho. A praia no frio é quase mais bonita. O cachorro também acha, acho. Mesmo molhado na praia molhada e fria, quase de noite, já meio de noite, de noite, mas lá tem luz, não tem?

Ela: “Me dá um cigarro?”

Ele: “Tá no porta-luvas.”

Som do porta-luvas sendo aberto e logo depois fechado. Som de maço de cigarro.

Ela: “Me dá um isqueiro?”

Ele: “Tá no bolso.”

Ela: “Esquerdo ou direito?”

Ele: “ Direito.”

Som dela mexendo na calça dele. Som de isqueiro acendendo, som de alguém tragando. Som de vidro abrindo, da fumaça saindo e da cidade entrando.

Ela: “E se a gente jantasse?”

Ele: “Onde?”

Ela: “Em qualquer lugar.”

Ele: “Qualquer lugar onde?”

Ela: “Ali, por exemplo, ou naquele que cê gosta.”

Ele: “Melhor não.”

Ela: “Você se lembra de quando eu fiz um pato para você?”

Ele: “Com laranja.”

Ela: “E aspargo. Você nem tocou no aspargo. Na hora eu nem comentei. A laranja estava azeda, você preferia, dizia que preferia. Eu joguei umas doze fora até achar a azeda. Você preferia. Acho que foram mais de 12, umas quinze, quinze ou vinte doces. Você dizia que laranja doce era pior que chuchu. Eu gostava de chuchu, naquele tempo. Você ainda tinha fome, sede, saúde. Você até repetia, fazia elogios. Foi nosso primeiro jantar na casa nova, depois da mudança, antes do acidente. Você falava enquanto comia, falava muito, falava de cinema para me impressionar, fazia tipo, fazia onda, fazia força, fazia de conta, fazia de lado, por trás, por cima.”

Ele: “E dormia depois.”

Ela: “Sempre. E eu também. A gente sabia dormir, naquele tempo.”

Silêncio. O silêncio depois da fala é mais forte que a fala, dizem. A gente podia ficar horas ali naquele carro vagando pela cidade, um cigarro atrás do outro, uma rua atrás da outra, a praia, outra praia, outra praia. Os faróis de trás, vermelhinhos, são melhores que os da frente, muito brancos, muito claros, muito fortes. Bom para pensar na vida. Já tem muita janela acesa, ninguém gosta de ficar no escuro. Talvez aquele quarto andar. Ficar no escuro é pensar no dia que acabou. Ou na morte de alguém. Melhor dormir de uma vez. Mas aqui no carro tem a luz de fora, no carro a gente nunca sente o escuro que sente na sala. Sala escura, casa vazia, notícia ruim. Melhor pensar outra coisa, olhar o horizonte. Deve ter alguém no mar.

Ela: “E se a gente nadasse?”

Ele: “ Crawl?”

Ela: “ É. ”

Ele: “ Onde?”

Ela: “ No mar.”

Ele: “De noite?”

Ela: “É.”

Ele: “No frio?”

Ela: “É.”

Ele: “De roupa?”

Ela: “Não”

Ele: “Sem roupa?”

Ela: “É.”

Ele: “Sem chance.”

Ela: “Você se lembra da gente nas pedras? A gente foi nadando, o mar quase te arrastou. Você subiu primeiro, depois eu. A gente esperou o pescador ir embora, ou não esperou, já nem lembro, e depois ele foi mesmo porque a gente nem ligou e foi em frente, em frente. Aquele céu de dia seco, azul seco, a pele salgada e seca, você deu aqueles gritinhos ui ui ui, iguais aos dos primeiros dias, lembra? E de noite de novo, tudo igual. Eu fiquei toda ralada, várias vezes. A gente fazia em qualquer canto, naquela época. Ralava na pedra, enchia de areia, debaixo da espuma, só a cabeça pra fora, no meio das ondas, engolia água, passava vergonha, falava baixinho, gemia baixinho, na ponta do pé, quase morria.”

Silêncio, cigarro, buzina.

Ela: “E se a gente se matasse?”

Ele: “Pra que?”

Ela: “Pra resolver a vida.”

Ele: “Já tá tarde, melhor amanhã.”

Ela: “Amanhã eu posso não querer.”

Ele: “A gente espera mais um pouco.”

Ela: “Uns dois dias?”

Ele: “Por aí, dois ou três.”

Ela: “Canalha!”

Silêncio.

Ela: “Uma vez você me disse que morria se eu fosse com ele. Foi naquele dia da praia, lembra? Depois nunca mais. Depois da praia. Eu até fui com ele, sem vontade, fui de novo, fiz tudo que eu pude. Mas isso foi depois. Antes você ligava. Você até me disse um poema, uma frase bonita, uma rima. Lembro bem. Me levou para passear na beira da praia, um dia frio e feio, só a gente passeando na praia, aquela rima. Depois a gente sentou e ficou quieto. Devem ter passado duas horas, lembra, de silêncio e marulho. Você sempre foi bom de silêncio. A gente, a espuma chegando perto, o sorveteiro. Ele devia estar triste, aquele sorveteiro. Não tinha mais ninguém na praia naquele dia. Quem ia tomar sorvete naquele frio, naquela praia? Tinha os olhos tristes, lembra? Eu disse isso tudo pra você e você o chamou e pediu um sorvete. De coco, não foi? E voltou pro silêncio. Eu ainda consegui pensar no sorveteiro, na tristeza dele, no frio de cada picolé daquela geladeira. Até ouvir a rima. De onde você tirou aquela rima, naquela hora? O poema era fraquinho blá blá blá, nem lembro, mas a rima não. Eu cheguei a chorar, acho. Você não deve ter visto. Ou viu. Talvez por isso tenha me dado aquela lambida. Ainda sinto aquele gosto quando o tempo esfria, quando eu esfrio. Nunca vou me esquecer daquela lambida que você me deu do seu sorvete.”

Silêncio.

Ela: “Cê topa um sorvete?”

Fim



Imagine sua casa cheia de algodão, do chão ao teto.

Agora vá até seu quarto, cavando o algodão para abrir caminho.

Imagine seu corpo rodeado de algodão, você de olhos abertos.

Agora dê um grito bem alto.





Imagine um copo ao relento, num lugar onde nunca, sob nenhuma hipótese, choveu ou choverá.

De tempos em tempos, homens bem treinados limpam ao redor, sem jamais tocar no copo.

Os anos passam, aos milhares. Camada por camada, o pó vai enchendo o copo, até a boca.

E é daí que você chega e, tomado pela sede, vira num só gole.




Mira

MIRA


Roteiro para curta-mertagem.

Sinopse:

Uma cena única, aparentemente banal, em que mais de um dia/momento parecem se fundir. Um casal conversa na sala de sua casa, um chalé isolado nas montanhas. Ele bem mais velho, cinzento e angustiado, ela leve, bonita e avoada. Uma manhã como as outras, não tivesse sido – secretamente – a última da relação. Ela (Mira) é quem conta a história, como personagem/diretora e personagem/personagem. Em sua memória difusa, essa manhã falsamente ordinária é uma e muitas ao mesmo tempo. Nenhum fato extraordinário, apenas um clima crescentemente aflitivo, vazio, angustiante. Lembranças ainda mais antigas surgem pelo som, sem imagem. A imagem é sempre a daquela manhã, que, na hora, ela não percebeu ser fatídica. Só depois, tarde demais.

Notas sobre a estrutura:

A idéia básica para a realização deste filme é gravar a mesma cena diversas vezes, em três períodos distintos, e editar sem preocupação com a continuidade da imagem – apenas preservando a linha do diálogo.

Para tanto, imagina-se três sessões de gravação (com 2 dias cada) espaçadas ao menos 15 dias entre si. Em cada uma das três, não apenas as roupas devem ser diferentes, como também os cabelos, o bronzeado da pele, a barba do homem, a luminosidade do ambiente etc. Os atores devem ser absolutamente fiéis ao texto, mas não terão marcações rígidas de movimento, trajetória ou posição, nem mesmo de continuidade. É importante, no entanto, que as seqüências de ações/eventos/falas ao longo da cena sejam respeitadas sempre, já que são elas, e não a imagem dos atores, o fio condutor do filme.

A montagem deve favorecer a sensação de contradição, de imprecisão visual da narrativa, reforçando a subjetividade na maneira de contar. Ela não obedecerá o raccord da montagem tradicional, preocupando-se em transmitir não só a história, mas também o clima difuso e angustiado da memória da personagem.

A referência da personagem/diretora é uma memória turva, misturada, que ela não tenta corrigir ou padronizar. O tempo da cena é o tempo real da ação, embora o olho esteja presenciando saltos temporais aleatórios e indefinidos ao ver as mudanças físicas nos personagens e nos ambientes. A imagem trai a narrativa e vice-versa.

Falas/memória e sons/memória (falas e ambientes sonoros distantes no tempo e no espaço) entrarão em off ao longo do diálogo, trazendo a baila reminiscências esparsas da história do casal.

Um ensaio de filme-memória em que Mira, a suposta diretora, é a personagem diante e detrás da câmera, procurando a si mesma ao contar sua própria história.

Locação:

Filmado numa casa isolada, no alto de uma colina, cercada por mato e com uma bela vista de montanhas.

Personagens:

Dois personagens apenas:

João, homem alto e esguio, chegando aos sessenta. Rosto marcado, semblante intranqüilo, bastante ansioso.

Mira, mulher bonita, trinta e poucos anos. Corpo magro, pele clara, meio aérea, olhos lindos.


Roteiro:

Seqüência “prólogo”

Romulo Fróes, na sala de gravação de um estúdio, canta a música Fala:

fala

mas não separa o não do sim

dá-lhe sombra

tanta quanto existe a tua volta

olha ao redor

como tudo revive a tua volta

pela morte

diz a verdade quem diz sombra

mas não separa o não do sim

dá-lhe sombra

tanta quanto existe a tua volta

olha ao redor

como tudo revive a tua volta

pela morte

diz a verdade quem diz sombra

diz a verdade quem diz sombra

Seqüência 1 – Exterior, dia.

Plano fixo das montanhas com o rio embaixo, nuvens se movendo lentamente, uma tempestade se formando. Som direto, som da mata. Sentada num banco, de costas para a câmera, uma mulher (Mira, um pouco mais velha, com cabelo preso e óculos) observa a paisagem.

Mira

(em off)

É difícil para mim. (Pausa.) Já faz tempo, mas ainda dói. Aquela manhã era como essa, bem desse jeito, dessa cor, se não me esqueço. Difícil confiar na minha memória, cada dia mais, mas daquela manhã eu me lembro, lembro bem.

Nesse exato momento, a câmera começa uma lenta panorâmica para a esquerda que, ao final do plano, completará 360º. A voz de Mira segue em off.

Mira

(em off)

Da cara é que eu não lembro. A cara me foge. Eu fecho os olhos e ela não vem, e eu olho nas fotos e não é aquela, e isso eu sei. (Pausa.) A voz para mim é mais fácil, o som, não sei por que. Deve ser um eco na cabeça, dizem que é normal. Mas eu queria lembrar da cara. Eu nunca filmei a cara dele. Teria sido tão fácil, naquele tempo. (Pausa.) E foi difícil achar um ator com a cara dele. (Pausa.) Eu queria lembrar da cara. (Pausa.) Raiva eu não tenho, isso não, não hoje, nem ódio, nem rancor; muito menos pena. Alguma inveja, isso sim, eu que achava que ia fazer antes dele. Mas não. Não fiz nem farei, acho eu. (Pausa) Só um filme, foi o máximo que eu pude.

A cena completa seu giro de 360º e enquadra Mira sentada no banco, ainda olhando a paisagem. Após alguns segundos, ela se levanta e vai andando em direção à casa, até sair de quadro. O plano continua fixo no mesmo ponto, por mais 5 ou 7 segundos, até um corte seco para uma tela preta, sobre a qual o título entra em letras brancas:

“Mira”

Seqüência 2 – Interior, dia, meados da manhã.

A cena começa com a sala toda aberta, sem ninguém à vista. Após algum tempo, Mira chega pela frente, acompanhada por um cão labrador velho e manco. Depois de dar uns tapinhas nas costas do cachorro, vai até a cozinha, pega um copo de suco e senta-se na bancada para dar uma olhada no jornal. Alguns segundos depois, João sai do quarto, atravessa a sala e vai até a área de serviço, passando por trás de Mira sem dizer nada. Ela também o ignora, e continua ali lendo o jornal e tomando suco. Ele volta, pega uma lata de cerveja na geladeira, abre, dá um gole largo.

Mira está absorta pela leitura e demora a responder.

João, a essa altura, parece ter perdido o empenho em explicar. Ambos continuam envolvidos com suas pequenas operações: ela lendo jornal, ele fumando e bebendo cerveja. O que menos importa é a presença do outro. João ignora a pergunta, como se não valesse a pena gastar energia com a conversa. Mira dá um gole de suco e pergunta novamente:

João ignora novamente, dá um gole derradeiro em sua cerveja, amassa a latinha, lança-a no lixo e vai a geladeira pegar uma segunda.

João volta para onde estava, e começa a olhar para as mãos, como se procurasse alguma cicatriz.

João demora um pouco para se mexer, bate as últimas cinzas na pia, joga fora a guimba, pega uma parte do jornal e deita-se na rede, apoiando no chão sua cerveja.

Mira levanta-se com o jornal na mão, vai até o aparelho de som, liga o rádio e, sem tirar os olhos do papel, procura sintonizar a previsão do tempo.

(Entra um som de noticiário de rádio mal-sintonizado)

Mira fica ali em pé, ao lado do rádio, lendo e escutando. Depois de uns 10 segundos, fala de novo:

João permanece calado, os olhos fixos sobre o jornal, sem conseguir ler nada, absorto com algum pensamento. A câmera vai se afastando dele, e começa a observar os objetos espalhados pela sala. Os dois ficam fora de quadro.

A câmera continua percorrendo objetos pela sala. Um burburinho vai surgindo aos poucos como BG, se misturando ao som do rádio e da mata, até conseguirmos identificar o ambiente de uma festa. A voz de João entra então em off.

João

(em off, BG de festa )

Você se chama Mira, não chama? A gente se falou no festival do ano passado, lembra? Foi nessa mesma festa, nessa mesma sala. Você vestia uma blusa preta, um brinco comprido, fumava um cigarro. Eu te pedi fogo e você falou do meu livro. Disse que gostava, principalmente do final. Eu detesto elogio gratuito, mas o seu não foi, depois eu vi. Você falou coisas legais, salvou minha noite. Só no fim disse seu nome: Mira. Eu guardei, naturalmente. Mas não foi só o nome.

Ainda antes do fim da fala, a câmera reencontra Mira, próxima ao rádio, lendo jornal em silêncio.

Mira

(em off, BG de festa)

Eu lembro, lembro bem. Você ficou mudo, misterioso. Achei que tinha me estranhado. Você saiu pra pegar uma bebida. Fiquei ali me achando chata, tive vergonha, fugi em seguida. Um ano depois você vem com esse papo. Parece piada. Me dá um gole do seu uísque? (Som do gole.) Me leva daqui?

Antes da fala em off de Mira acabar, a câmera vai se afastando até abrir um plano geral da sala. O BG de festa vai sumindo aos poucos.

Mira

(Em off, BG de quarto fechado, madrugada.)

Se eu soubesse tinha vindo antes.

Mira

(Em off. Voz sussurrada, falada ao pé do ouvido.)

Naquela hora você não disse nada. Nem um gemido. E foi tão bom, tão bom. (Pausa.) Ah, se eu soubesse... (Pausa.) Quantas vezes eu chamei... Você é teimoso, até nessa hora. (Pausa.) Mas valeu, não valeu? Foi bom, não foi? Diz, vai... Só pra mim... Fora aquele grito, você nunca disse nada.

Mira vai novamente até o fogão e tira os salgadinhos do forno. João fica na rede, fumando e bebendo. Mira põe os salgadinhos num prato e vai levar pra ele. A câmera acompanha os movimentos dela e observa João de longe.

Mira

(Em off. BG de mata, som de riacho.)

Adorei a casa, você não disse que era assim. Adoro mato, chuva, cachorro. Tem até um riachinho. Você tem medo do que?

Mira se aproxima e dá um beijo na testa de João, que não se move. Senta-se então ao lado dele e oferece-lhe a cerveja e os salgadinhos. Ele pega apenas a cerveja.

Mira

(Em off. BG de rua comercial, Mira falando mais alto, quase nervosa.)

Você disse que gostava de vermelho. Eu escolhi vermelho por sua causa. Por mim, teria sido preto. Eu fiz isso por você. Agora vermelho é ridículo. (Pausa.) Ridículo é você. Ridícula sou eu. Ridícula é essa conversa a essa hora. (Pausa.) Eu só queria te ver alegre, sair um pouco, te levar para ver o mar.

João se levanta e desliga o rádio, irritado. Mira não diz nada.

Mira segue beliscando os salgadinhos. Depois levanta, vai até a geladeira e pega uma caixa de suco de laranja.

João liga o rádio novamente e volta a fumar seu cigarro. Mira põe o suco em um copo e toma um gole.

João desliga o rádio novamente, apaga o cigarro no cinzeiro e vai até a cozinha.

Mira, que estava desatenta, responde depois de alguns segundos.

João acende outro cigarro.

Mira

(Em off. Voz sussurrada, falada ao pé do ouvido.)

Fazia tempo que você não vinha, essa mão pesada, esse aqui durinho. Eu estava até ficando preocupada. Seu cheirinho de cigarro andava longe, meu suco quase seco. Isso... assim... assim... faz tudo com jeitinho, meu amor... isso... assim... que eu faço pra você aquela cara medonha.

Mira não olha para ele, e continua lavando o prato.

Sem dizer nada, ele entra no quarto. Ela fica ali, arrumando a cozinha, cantarolando uma musiquinha alegre. Ele passa de volta, vai até o carro, manobra e sai. Ela nem olha. Logo depois, vai para o quarto. A câmera fica observando a sala vazia a partir do centro da varanda, iniciando em seguida um giro lento para a esquerda, até completar 360º. No começo do giro, entra a voz de Mira, em off, lendo carta de João.

Mira

(Em off.)

Mira querida, vai ser melhor assim. Eu bem que tentei, você sabe o quanto. E sabe também que era minha última ficha – eu juro que achei que dava. Mas não deu. Tem gente que não devia ter nascido. Eu mesmo, será que nasci? A natureza é vagarosa, sádica, era hora de tomar uma atitude. Melhor assim. Continuar era pura teimosia, e você merece mais. Eu não. Você me desculpa? (não pela morte, que era a única saída, mas pelo mau humor nas tardes de sol, por não ter ido com você no passeio da praia, pelo bafo de morte de manhã). Pode ficar com tudo para você, inclusive a casa. Não conte a verdade pra ninguém, diga que foi acidente, pro seguro te pagar o carro de volta. Um último beijo, João.

Quando a câmera se volta novamente para a sala, Mira está lá sentada numa cadeira, de frente para a câmera/paisagem, com a cara vazia, sem expressão, segurando a carta com as mãos moles, apoiadas sobre as coxas.

FIM