MIRA
Roteiro para curta-mertagem.
Sinopse:
Uma cena única, aparentemente banal, em que mais de um dia/momento parecem se fundir. Um casal conversa na sala de sua casa, um chalé isolado nas montanhas. Ele bem mais velho, cinzento e angustiado, ela leve, bonita e avoada. Uma manhã como as outras, não tivesse sido – secretamente – a última da relação. Ela (Mira) é quem conta a história, como personagem/diretora e personagem/personagem. Em sua memória difusa, essa manhã falsamente ordinária é uma e muitas ao mesmo tempo. Nenhum fato extraordinário, apenas um clima crescentemente aflitivo, vazio, angustiante. Lembranças ainda mais antigas surgem pelo som, sem imagem. A imagem é sempre a daquela manhã, que, na hora, ela não percebeu ser fatídica. Só depois, tarde demais.
Notas sobre a estrutura:
A idéia básica para a realização deste filme é gravar a mesma cena diversas vezes, em três períodos distintos, e editar sem preocupação com a continuidade da imagem – apenas preservando a linha do diálogo.
Para tanto, imagina-se três sessões de gravação (com 2 dias cada) espaçadas ao menos 15 dias entre si. Em cada uma das três, não apenas as roupas devem ser diferentes, como também os cabelos, o bronzeado da pele, a barba do homem, a luminosidade do ambiente etc. Os atores devem ser absolutamente fiéis ao texto, mas não terão marcações rígidas de movimento, trajetória ou posição, nem mesmo de continuidade. É importante, no entanto, que as seqüências de ações/eventos/falas ao longo da cena sejam respeitadas sempre, já que são elas, e não a imagem dos atores, o fio condutor do filme.
A montagem deve favorecer a sensação de contradição, de imprecisão visual da narrativa, reforçando a subjetividade na maneira de contar. Ela não obedecerá o raccord da montagem tradicional, preocupando-se em transmitir não só a história, mas também o clima difuso e angustiado da memória da personagem.
A referência da personagem/diretora é uma memória turva, misturada, que ela não tenta corrigir ou padronizar. O tempo da cena é o tempo real da ação, embora o olho esteja presenciando saltos temporais aleatórios e indefinidos ao ver as mudanças físicas nos personagens e nos ambientes. A imagem trai a narrativa e vice-versa.
Falas/memória e sons/memória (falas e ambientes sonoros distantes no tempo e no espaço) entrarão em off ao longo do diálogo, trazendo a baila reminiscências esparsas da história do casal.
Um ensaio de filme-memória em que Mira, a suposta diretora, é a personagem diante e detrás da câmera, procurando a si mesma ao contar sua própria história.
Locação:
Filmado numa casa isolada, no alto de uma colina, cercada por mato e com uma bela vista de montanhas.
Personagens:
Dois personagens apenas:
João, homem alto e esguio, chegando aos sessenta. Rosto marcado, semblante intranqüilo, bastante ansioso.
Mira, mulher bonita, trinta e poucos anos. Corpo magro, pele clara, meio aérea, olhos lindos.
Roteiro:
Seqüência “prólogo”
Romulo Fróes, na sala de gravação de um estúdio, canta a música Fala:
fala
mas não separa o não do sim
dá-lhe sombra
tanta quanto existe a tua volta
olha ao redor
como tudo revive a tua volta
pela morte
diz a verdade quem diz sombra
mas não separa o não do sim
dá-lhe sombra
tanta quanto existe a tua volta
olha ao redor
como tudo revive a tua volta
pela morte
diz a verdade quem diz sombra
diz a verdade quem diz sombra
Seqüência 1 – Exterior, dia.
Plano fixo das montanhas com o rio embaixo, nuvens se movendo lentamente, uma tempestade se formando. Som direto, som da mata. Sentada num banco, de costas para a câmera, uma mulher (Mira, um pouco mais velha, com cabelo preso e óculos) observa a paisagem.
Mira
(em off)
É difícil para mim. (Pausa.) Já faz tempo, mas ainda dói. Aquela manhã era como essa, bem desse jeito, dessa cor, se não me esqueço. Difícil confiar na minha memória, cada dia mais, mas daquela manhã eu me lembro, lembro bem.
Nesse exato momento, a câmera começa uma lenta panorâmica para a esquerda que, ao final do plano, completará 360º. A voz de Mira segue em off.
Mira
(em off)
Da cara é que eu não lembro. A cara me foge. Eu fecho os olhos e ela não vem, e eu olho nas fotos e não é aquela, e isso eu sei. (Pausa.) A voz para mim é mais fácil, o som, não sei por que. Deve ser um eco na cabeça, dizem que é normal. Mas eu queria lembrar da cara. Eu nunca filmei a cara dele. Teria sido tão fácil, naquele tempo. (Pausa.) E foi difícil achar um ator com a cara dele. (Pausa.) Eu queria lembrar da cara. (Pausa.) Raiva eu não tenho, isso não, não hoje, nem ódio, nem rancor; muito menos pena. Alguma inveja, isso sim, eu que achava que ia fazer antes dele. Mas não. Não fiz nem farei, acho eu. (Pausa) Só um filme, foi o máximo que eu pude.
A cena completa seu giro de 360º e enquadra Mira sentada no banco, ainda olhando a paisagem. Após alguns segundos, ela se levanta e vai andando em direção à casa, até sair de quadro. O plano continua fixo no mesmo ponto, por mais 5 ou 7 segundos, até um corte seco para uma tela preta, sobre a qual o título entra em letras brancas:
“Mira”
Seqüência 2 – Interior, dia, meados da manhã.
A cena começa com a sala toda aberta, sem ninguém à vista. Após algum tempo, Mira chega pela frente, acompanhada por um cão labrador velho e manco. Depois de dar uns tapinhas nas costas do cachorro, vai até a cozinha, pega um copo de suco e senta-se na bancada para dar uma olhada no jornal. Alguns segundos depois, João sai do quarto, atravessa a sala e vai até a área de serviço, passando por trás de Mira sem dizer nada. Ela também o ignora, e continua ali lendo o jornal e tomando suco. Ele volta, pega uma lata de cerveja na geladeira, abre, dá um gole largo.
João
O primeiro gole é o que vale. O resto é puro tédio.
Ele dá mais um gole grande, apóia a latinha sobre a pia, tira um maço do bolso e acende um cigarro.
João
Tem uma coisa que eu queria te dizer. Uma coisa sobre a gente.
Mira está absorta pela leitura e demora a responder.
Mira
O que tem a gente?
João, a essa altura, parece ter perdido o empenho em explicar. Ambos continuam envolvidos com suas pequenas operações: ela lendo jornal, ele fumando e bebendo cerveja. O que menos importa é a presença do outro. João ignora a pergunta, como se não valesse a pena gastar energia com a conversa. Mira dá um gole de suco e pergunta novamente:
Mira
O que tem a gente? Você tava falando da gente...
João continua absorto, sem olhar para ela.
Mira
Fala, agora fiquei curiosa.
João ignora novamente, dá um gole derradeiro em sua cerveja, amassa a latinha, lança-a no lixo e vai a geladeira pegar uma segunda.
Mira
A chuva não veio.
João volta para onde estava, e começa a olhar para as mãos, como se procurasse alguma cicatriz.
João
As vezes não parece a gente, parece um comercial de margarina, um dia feliz num anuncio de cereal.
Mira
Anuncio de cereal? Dia feliz? Como assim? (Pausa.) Meus dias são felizes. Eu adoro isso aqui. (Pausa) Você é meu dia feliz.
João
Seu dia feliz. (Pausa.) Dia, eu; feliz, eu... (Pausa. João fica olhando a mão esquerda). Pra você, Laurinha, qualquer coisa tá bom, qualquer coisa faz bem, um raio de sol, uma xícara de chá, um cheiro doce, um marido caquético. Pra você tanto faz, um dia, um ano, um mundo, um velho.
Mira
Sem essa melancolia mal-humorada, meu amor, tá muito cedo. Pára com isso. Você quer um pedaço do jornal?
João demora um pouco para se mexer, bate as últimas cinzas na pia, joga fora a guimba, pega uma parte do jornal e deita-se na rede, apoiando no chão sua cerveja.
Mira levanta-se com o jornal na mão, vai até o aparelho de som, liga o rádio e, sem tirar os olhos do papel, procura sintonizar a previsão do tempo.
(Entra um som de noticiário de rádio mal-sintonizado)
Mira
Hoje ela vem. No fim do dia, acho eu.
João
(depois de algum tempo)
Quem?
Mira
A chuva. Hoje vem chuva, acho eu, no fim do dia...
Mira fica ali em pé, ao lado do rádio, lendo e escutando. Depois de uns 10 segundos, fala de novo:
Mira
Furacão na Flórida, mais um. Está aqui no jornal. Começou a temporada.
João permanece calado, os olhos fixos sobre o jornal, sem conseguir ler nada, absorto com algum pensamento. A câmera vai se afastando dele, e começa a observar os objetos espalhados pela sala. Os dois ficam fora de quadro.
Mira
Maria.
João
(depois de algum tempo, após um gole de cerveja)
Maria?
Mira
O furacão, o furacão se chama Maria. Categoria 4. Já estão na letra M, a minha letra. Bem que podia ser Mira. “Mira arrasa seis cidades da Flórida e já ameaça o litoral do Texas”. Fica bom, não fica? Se bem que Maria é mais comum... Maria é Maria. Maria são todas.
A câmera continua percorrendo objetos pela sala. Um burburinho vai surgindo aos poucos como BG, se misturando ao som do rádio e da mata, até conseguirmos identificar o ambiente de uma festa. A voz de João entra então em off.
João
(em off, BG de festa )
Você se chama Mira, não chama? A gente se falou no festival do ano passado, lembra? Foi nessa mesma festa, nessa mesma sala. Você vestia uma blusa preta, um brinco comprido, fumava um cigarro. Eu te pedi fogo e você falou do meu livro. Disse que gostava, principalmente do final. Eu detesto elogio gratuito, mas o seu não foi, depois eu vi. Você falou coisas legais, salvou minha noite. Só no fim disse seu nome: Mira. Eu guardei, naturalmente. Mas não foi só o nome.
Ainda antes do fim da fala, a câmera reencontra Mira, próxima ao rádio, lendo jornal em silêncio.
Mira
(em off, BG de festa)
Eu lembro, lembro bem. Você ficou mudo, misterioso. Achei que tinha me estranhado. Você saiu pra pegar uma bebida. Fiquei ali me achando chata, tive vergonha, fugi em seguida. Um ano depois você vem com esse papo. Parece piada. Me dá um gole do seu uísque? (Som do gole.) Me leva daqui?
Antes da fala em off de Mira acabar, a câmera vai se afastando até abrir um plano geral da sala. O BG de festa vai sumindo aos poucos.
João
Eu pus uns salgadinhos no forno. Será que já estão prontos?
Mira
Quando ficam prontos a gente sente o cheiro.
João
Cheiro... Já faz anos que não sinto cheiro. Nem lembro como é. Cheiro de pão quentinho, cheiro de leite azedo, de cachorro molhado, de jaca caída, cheiro de mulher pelada. Você não quer ir até o forno e dar uma olhadinha? Vai meu amor, dá uma olhadinha...
Mira
Deixa comigo, daqui eu sei, meu nariz não falha. E seu livro, como vai?
João
Cheiro de bicho morto, de pano úmido.
Mira vai até a varanda olhar a paisagem. A câmera a acompanha. Ela fala enquanto anda, sem olhar para João.
Mira
Você matou o cara?
João
O quê?
Mira
Tô falando do seu livro, daquele personagem mais velho, charmosão. Você já matou?
João
Nem cheiro de boceta eu sinto mais. Cheiro de mijo, de bafo, de baba. Eu queria sentir cheiro, lembrar como é, sentir cheiro de gente viva.
Mira
Pelo jeito hoje é um daqueles dias, pelo jeito não vai dar pra conversar.
João
Pelo jeito lá vem você com esse seu jeito...
A câmera observa Mira de lado, com a paisagem ao fundo.
Mira
(Em off, BG de quarto fechado, madrugada.)
Não sabia que você gostava tanto. Homem triste surpreende. Fiquei toda ralada, no joelho também. Fiquei assada, toda molhada, um suco quente e grosso escorrendo pela perna. Se eu soubesse tinha vindo antes. No fundo eu já sabia.
A câmera vai isolando a paisagem, tirando Mira de quadro.
João
Faz cinco dias que eu só apago. (Pausa.) Ontem foram dez páginas. Lixo puro. (Pausa.) A gente fracassa quando começa. Esse livro vai ser outro fracasso, se ainda sobrar alguma coisa, alguma coisa pra contar a história.
João
(Em off, logo em seguida da fala. Voz de João ao telefone, BG com música ligada ao fundo, bem baixinho.)
Vem, querida, chega logo antes que eu morra. Vem pra cá. Diz aquelas coisas sujas, me levanta da cadeira, morde fundo essa minha coxa molenga, faz aquela cara medonha.
Ao final da fala de João, a câmera volta a mostrar Mira na varanda olhando a paisagem.
Mira
Imagina ver um furacão de perto...
Mira
(Em off, BG de quarto fechado, madrugada.)
Se eu soubesse tinha vindo antes.
João
Imagina morrer num furacão? Ser atirado na porrada pro miolo da enchente de esgoto, de lama, de pixe? Imagina amanhecer boiando na calmaria do caldo preto do dia seguinte? É digno, não acha?
Mira
(Em off. Voz sussurrada, falada ao pé do ouvido.)
Naquela hora você não disse nada. Nem um gemido. E foi tão bom, tão bom. (Pausa.) Ah, se eu soubesse... (Pausa.) Quantas vezes eu chamei... Você é teimoso, até nessa hora. (Pausa.) Mas valeu, não valeu? Foi bom, não foi? Diz, vai... Só pra mim... Fora aquele grito, você nunca disse nada.
Mira
Os salgadinhos já devem estar bons. Quem sabe eles melhoram seu humor, você pára de falar de morte e vem me dar um beijo na boca.
João
(Em off. Voz sussurrada, falada ao pé do ouvido.)
Faz, meu amor, aquela cara medonha.
Mira vai novamente até o fogão e tira os salgadinhos do forno. João fica na rede, fumando e bebendo. Mira põe os salgadinhos num prato e vai levar pra ele. A câmera acompanha os movimentos dela e observa João de longe.
Mira
(Em off. BG de mata, som de riacho.)
Adorei a casa, você não disse que era assim. Adoro mato, chuva, cachorro. Tem até um riachinho. Você tem medo do que?
João
Traz mais uma cerveja pra mim?
João pega mais um cigarro no maço e passa-o pelo nariz, aspirando fundo. Mira vai até a geladeira e paga mais uma cerveja para ele.
João
Nem o cheiro do cigarro.
João
(Em off. BG de motor, João falando dentro de uma carro.)
Agora é diferente. Não é só pelo instinto, pela pele, pelo pau. Tem mais coisa. Até amor, acho. Amor, amor. (Pausa.) É sério. (Pausa) Você ri, mas é sério. Agora é pra descansar um pouco, ter paz, amarrar o burro. Ou vai ou racha. (Pausa.) Você é meu presente pra mim, meu acerto de contas. Ainda dá tempo, não dá? Querida, te juro, não é só pela pele, pelo pau. Não é só tua voz de manhã, teu cheiro no escuro que não sinto, teu suco quente e grosso, teu sono tranqüilo. Tem mais coisa.
Mira se aproxima e dá um beijo na testa de João, que não se move. Senta-se então ao lado dele e oferece-lhe a cerveja e os salgadinhos. Ele pega apenas a cerveja.
Mira
(Em off. BG de rua comercial, Mira falando mais alto, quase nervosa.)
Você disse que gostava de vermelho. Eu escolhi vermelho por sua causa. Por mim, teria sido preto. Eu fiz isso por você. Agora vermelho é ridículo. (Pausa.) Ridículo é você. Ridícula sou eu. Ridícula é essa conversa a essa hora. (Pausa.) Eu só queria te ver alegre, sair um pouco, te levar para ver o mar.
João se levanta e desliga o rádio, irritado. Mira não diz nada.
João
A gente se muda para ficar em paz, pra ter sossego, mas não consegue desligar. Pelo menos aqui não tem TV. (Pausa) Ontem foram dez páginas pro lixo. (Pausa.) Escrever é uma tortura. (Pausa.) Eu devia era fazer televisão, que nem antes. Aquilo era uma merda, mas tinha fim. Esse livro é um pesadelo, um pesadelo falante.
Mira segue beliscando os salgadinhos. Depois levanta, vai até a geladeira e pega uma caixa de suco de laranja.
Mira
Você quer suco?
João liga o rádio novamente e volta a fumar seu cigarro. Mira põe o suco em um copo e toma um gole.
João
Esse rádio é um saco.
Mira
Foi você que ligou de novo. Eu já ouvi o que queria.
João desliga o rádio novamente, apaga o cigarro no cinzeiro e vai até a cozinha.
João
Não sei, talvez seja isso mesmo. (Pausa) Talvez ele tenha que morrer. Chega uma hora que não vale mais a pena, não tem mais saída.
Mira, que estava desatenta, responde depois de alguns segundos.
Mira
O que? Quem?
João
O cara do meu livro, você não perguntou? (Pausa) Acho que vou acabar matando, sim. Talvez você tenha razão. Você sempre tem razão (irônico), não é mesmo meu amor... (Pausa para um gole de cerveja.) Uma boa morte bem que era uma saída. Um descanso. Hoje eu tô com um gosto azedo na boca, um bafo podre, na verdade desde ontem, desde antes, sei lá quando.
Mira
Toma um gole de suco.
João
Não adianta, não passa.
Mira
Eu acho ele charmoso, parecido com você, quando te conheci. Curioso achar charmoso um personagem, um monte de palavras empilhadas. Mas tanto faz. Todo mundo morre um dia, não morre? É fácil matar o que não é carne. E depois não fede, não suja. Palavra suja é bom. Palavra morta é bom. Por mim tanto faz. (Pausa) Põe ele no meio de um furacão, no meio do Maria. Não é você que acha digno?
João acende outro cigarro.
Mira
(Em off. Voz sussurrada, falada ao pé do ouvido.)
Fazia tempo que você não vinha, essa mão pesada, esse aqui durinho. Eu estava até ficando preocupada. Seu cheirinho de cigarro andava longe, meu suco quase seco. Isso... assim... assim... faz tudo com jeitinho, meu amor... isso... assim... que eu faço pra você aquela cara medonha.
João
Você viu a chave do meu carro? Vou dar uma saída, um pulo na cidade.
Mira
Não vi não, deve estar no quarto. Aproveita e traz um vidro de Ajax, por favor, pra limpar o banheiro. E um saco de arroz, antes que acabe de novo.
Mira come o último salgado, leva o prato para a cozinha e começa a lavá-lo, falando sem olhar para João.
Mira
Por que você fez a barba hoje cedo? Só pra ir à cidade? Você disse que ia deixar crescer de vez...
João
Quero que você lembre bem da minha cara.
Mira não olha para ele, e continua lavando o prato.
Mira
Traz um pote de morangos também, e uma garrafa de vinho. Você adora vinho, faz tempo que a gente não bebe junto, de noite, juntinho.
Sem dizer nada, ele entra no quarto. Ela fica ali, arrumando a cozinha, cantarolando uma musiquinha alegre. Ele passa de volta, vai até o carro, manobra e sai. Ela nem olha. Logo depois, vai para o quarto. A câmera fica observando a sala vazia a partir do centro da varanda, iniciando em seguida um giro lento para a esquerda, até completar 360º. No começo do giro, entra a voz de Mira, em off, lendo carta de João.
Mira
(Em off.)
Mira querida, vai ser melhor assim. Eu bem que tentei, você sabe o quanto. E sabe também que era minha última ficha – eu juro que achei que dava. Mas não deu. Tem gente que não devia ter nascido. Eu mesmo, será que nasci? A natureza é vagarosa, sádica, era hora de tomar uma atitude. Melhor assim. Continuar era pura teimosia, e você merece mais. Eu não. Você me desculpa? (não pela morte, que era a única saída, mas pelo mau humor nas tardes de sol, por não ter ido com você no passeio da praia, pelo bafo de morte de manhã). Pode ficar com tudo para você, inclusive a casa. Não conte a verdade pra ninguém, diga que foi acidente, pro seguro te pagar o carro de volta. Um último beijo, João.
Quando a câmera se volta novamente para a sala, Mira está lá sentada numa cadeira, de frente para a câmera/paisagem, com a cara vazia, sem expressão, segurando a carta com as mãos moles, apoiadas sobre as coxas.
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