quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Maldita

Maldita

Ela nunca batia antes de entrar, depois que ganhou a chave. Não tinha hora nem dia pra chegar. Às vezes eu estava dormindo e só notava de manhã. Noutras a via entrar no prédio, quando saía na janela para fumar um cigarro. Eu fumava na época, e bebia. Fumava na janela e bebia na sala, ou vice-versa. Bebia sozinho, de preferência, três ou quatro doses, acho que era isso, toda noite, esperando por ela, que às vezes não vinha e aí era uma quinta e uma sexta e um desmaio profundo. Bons tempos.

Naquele dia eu escrevia um daqueles contos que eu nunca termino e que nunca terminei, quando ela entrou. Essa TV ligada me perturba demais, mas se eu desligo não dá, a solidão não dá. Agora mesmo está ligada e insuportável. Melhor assim. Naquele dia não, não tinha TV ligada naquela hora, ainda não precisava. Ela entrou sem bater, como sempre, depois que ganhou a chave. Eu estava escrevendo. Acho que era sobre o dia que passamos lá na ilha, eu e ela, naquele sol de Maio. Eu deitado, ela deitada, os olhos fechados, areia por baixo, céu por cima, sem nuvem, sem nada, ninguém. Acho que adormeci. Ela me acordou cantando, hálito de sal, e eu abri os olhos sentindo a sombra dela e os cabelos pendurados pingando areia e fazendo cosquinhas. A cara dela estalada de sol, na contraluz. A cara dela escura rodeada por cortinas de cabelo duro. Areia branca, sal branco, céu quase branco, pele preta e eu aqui. Essas coisas não voltam. O mar chegou até a gente e nos molhou tanto que eu ria e me afogava e ria e ela e ela. Melhor era ter morrido ali. Por que é que ela nunca batia antes de entrar? Mas pelo menos ela vinha, naquele tempo. Naquele dia escrevi bastante, sim, devo ter chegado até a parte do jantar, ou passado. Sim, com certeza, as palavras que eu usei no jantar, escolhidas a dedo e a faca e depois repetidas, uma a uma. Por que é que eu nunca terminei? O jantar que ela quis, do jeito dela, na casa dela, quase nunca era na casa dela, nem pensar em ter a chave. Ela cozinhava pior do que trepava, e menos. Mas não nesse dia. Cada palavra escolhida a faca. Eu era bom nisso, naquela época. Valeu cada minuto, cada ameixa – como eu detesto ameixa! Valeu o ralado nas costas, a ferida no joelho, as unhas enterradas nas costelas, no tapete, o pescoço torcido no sofá, o ouvido melado. Tapete peludo. Então ela apagou a luz. Daí foi isso. Lembranças. Cheiro, gosto, gosto bom, gosto ruim, omoplatas, tornozelo, umbigo, virilhas, virilhas, virilhas. O sofá duro, o bico duro do peito, dos dois, peitos de prata, pena da ganso. A vida da gente as vezes cabe num sofá. Dias felizes. O do jantar, digo, não aquele em que ela entrou quando eu estava escrevendo. Não, aquele não.

Quando ela entrou eu estava na parte do passeio, ela nunca batia antes de entrar, depois que ganhou a chave. Por trás de mim, ela leu alto o trecho do abraço e do sorvete vermelho. E riu. Maldita. E disse que o sorvete dela não era vermelho, era roxo, de ameixa, no passeio. Qual a diferença entre roxo e vermelho numa hora dessas, em que logo tudo estará perdido e o horizonte é negro e ela sabe e quis e enrolou pra dizer, mas disse. Roxo ou vermelho, a que ponto chegamos! Eu corrigi a cor do sorvete e escrevi na frente dela mais duas ou três coisas que eu logo apaguei porque era puro nervosismo, no fundo eu já sabia. Escrevi sobre aquele passeio na beira do rio, que foi numa tarde, uma tarde bonita, talvez de abril. A gente pra um lado, a água pro outro, nada de mais, nada de novo, a princípio. Mas as coisas não são assim ­- às vezes o mundo gira e a tarde paralisa. Ela era boa nisso. Maldita. Andamos por toda a margem falando baixo, pouco, quase nada. Deriva. Os olhos dela num dia de sol. Os olhos dela num dia de choro. Os olhos dela pedindo um sorvete vermelho para molhar a tarde de azedinho. Ela tinha dessas. Vem cá, vamos sentar um pouquinho no sofá, ela disse. Sentar pra que? Pra conversar, ela disse. Coisa séria? Senta, ela disse. Tô ouvindo, tá bom aqui, pode falar, pra que sentar no sofá? Senta logo, tô aflita, ela disse. Aflita por quê?

Ela nunca devolveu a chave.

***

Nenhum comentário: